Existem algumas
questões que são muito recorrentes entre os fãs e simpatizantes da obra de
H. P. Lovecraft que são geralmente entendidas de forma errada. É visando esclarecer
essas dúvidas que os apresento esse post. Essas informações fazem parte de uma
comunicação que apresentei em um evento, e disponibilizarei a versão completa,
com citações e referências bibliográficas, abaixo.
“Lovecraft era racista.”
Verdade,
mas há muita coisa envolvida nessa questão. Primeiro de tudo devemos considerar
seu contexto histórico. Lovecraft nasceu em 1890. A escravidão foi
definitivamente abolida em 1865, após o termino da Guerra de Secessão, ou seja,
apenas vinte e cinco anos antes de seu nascimento. Apesar da abolição, não
houve a tentativa de inserção do negro na sociedade. Inclusive com a consolidação
dos EUA como nação, no fim do século XIX, um verdadeiro cidadão era aquele
branco e abastado. Sendo assim, na época era completamente “normal” para
famílias tradicionais norte-americanas ter medo e aversão a indivíduos negros.
Como não é segredo para ninguém, o preconceito racial é um tema extremamente
complicado na cultura americana até os dias de hoje. Na época de HPL não era ao
menos considerada uma questão. Não havia mistura de etnias sob hipótese alguma.
Por esse sentido, portanto, Lovecraft era fruto de seu meio. Acontece que os
sentimentos negativos de Lovecraft não eram exclusivamente em relação a negros,
mas sim a qualquer estrangeiro. É muito mais válido afirmar que ele era mais
xenofóbico que racista. HPL crescera em uma família tradicional e conservadora,
orgulhosa de sua descendência e eram os mais típicos ianques. Para eles,
qualquer estrangeiro em suas terras estaria roubando suas oportunidades e pior,
denegrindo sua raça pura. Os anos em que
Lovecraft viveu em Nova York foram os piores de sua vida por vários motivos,
entre eles a forte presença de estrangeiros imigrantes, os quais ele
simplesmente não aceitava. Fruto desses sentimentos convulsivos é o conto Horror em Red Hook, situado no bairro de
mesmo nome na cidade de Nova York e cujo foco são personagens estrangeiras e
“denegridas” de acordo com o narrador. A questão central no racismo de
Lovecraft é que ele não suportava a miscigenação, era simplesmente esse fator
que o causava desgosto por acreditar que a incompatibilidade de etnias
resultaria em gerações menos inteligentes e deturpadas. Enquanto brancos
procriassem com brancos, negros com negros e assim por diante, ele não se aborrecia.
Acontece que esse ponto de vista ultraconservador não durou por toda a sua
vida. É importante sabermos que Lovecraft mudou muito de ponto de vista durante
seus anos. Em sua fase mais madura, já aceitava esses estrangeiros com maior
compreensão e inclusive sua esposa de curto período, Sonia Greene, era judia.
“Lovecraft era muito solitário e
tinha poucos amigos.”
Mito.
Provavelmente o maior mito que se ouve erroneamente sendo divulgado. Durante
sua adolescência ele fora sim, solitário. Passara por uma depressão e não saia
de casa. Mas isso durou apenas durante essa fase de sua vida. Através de suas
cartas podemos conhecer a extensa lista de amigos que possuía. Correspondia-se
com cerca de 50 a 75 pessoas. Apesar de se corresponder em um volume
incrivelmente alto através de cartas, muitas dessas amizades aconteciam ao
vivo. Lovecraft chegava a passar meses em outras cidades e estados (inclusive
cidades no Canadá) visitando seus amigos e gostava muito de fazer isso. Todos
os anos após o natal viajava até Nova York e se hospedava na casa de seu grande
amigo Frank Belknap Long, e passava seus dias com todos os amigos que pudesse.
Viajava para lugares como Nova Orleans e Flórida, onde permanecia semanas na
presença de seus amigos. Lovecraft só não viajou mais por problemas
financeiros. Entre seus melhores amigos estavam Long (citado anteriormente),
Robert E. Howard e R. H. Barlow. A questão desse lado da vida de Lovecraft é
que, durante muito tempo, até mesmo acadêmicos que o estudavam insistiam nessa
questão da solidão. Foi o estudo mais profundo de sua vida, especialmente de
suas cartas, que derrubou de vez todas essas falsas convicções.
“Lovecraft escreveu muito mais cartas do que
ficção.”
Verdade.
Muitas pessoas acreditam, inclusive, que HPL desperdiçava seu tempo com cartas
em vez de produzir sua literatura. Ele passava às vezes anos sem escrever um
único conto novo, porém as cartas nunca deixava de escrever. Acontece que toda
essa correspondência fez com que Lovecraft crescesse muito como pessoa,
expandindo seus horizontes fechados de ianque conservador. Durante toda sua
vida Lovecraft escreveu cerca de 100 mil cartas e apenas pouco mais de 60
contos (excluindo colaborações e ghost-writing). É válido lembrar que HPL
também escreveu diversos outros textos não literários, como trabalhos
científicos e jornalísticos.
“Característica fundamental da obra
de Lovecraft são criaturas pouco descritas, sempre com sua imagem em aberto
para a nossa imaginação.”
Meio
verdade, meio mito. A obra de Lovecraft não é consistente
em relação a isso. Podemos, inclusive, separar visivelmente essa característica
entre suas obras iniciais e suas obras mais maduras que compõe o Cthulhu
Mythos. Em relação a esse primeiro grupo de obras, a afirmação está correta.
Vejamos uma descrição da criatura Dagon, do conto de mesmo nome (1917): “Então,
de repente, o vi. Com um leve rumor que marcou sua chegada à superfície, a
coisa apareceu acima das águas escuras. Vasto como um Polifemo, horrendo, aquilo dardejava com um
pavoroso monstro saído de algum pesadelo em direção ao monólito, ao redor do
qual agitava os braços escamosos ao mesmo tempo que inclinava a cabeça hedionda e emitia sons
compassados.” Como vemos, não há nenhuma descrição exata da criatura, mas sim
palavras como “horrendo”, “monstro” e “hediondo” que deixam a imagem da
criatura totalmente sob a vontade de nossa própria imaginação.
Agora vejamos
uma descrição a respeito das criaturas Elder Ones, encontradas na obra Nas Montanhas da Loucura (1931): “(...)
Orrendorf e Watkins encontraram o fóssil monstruoso de uma criatura
desconhecida em forma de barril; provavelmente um vegetal, ou então um espécime
gigante de radiário marinho desconhecido. Tecido (...) resistente como o couro,
embora apresente espantosa flexibilidade em certas partes. (...) Um metro e
oitenta de ponta a ponta, um metro de diâmetro nas extremidades. Parece um
barril com cinco protuberâncias em vez de aduelas. Fraturas laterais, como que
de ramificações menores, estão presentes no equador das protuberâncias. Nos
sulcos entre as protuberâncias encontram-se formações curiosas. São cristas ou
asas que abrem e fecham como leques. (...) Estas asas parecem ser membranosas e
prendem-se à estrutura de um tubo glandular. Minúsculos orifícios visíveis nas
pontas das asas. (...) Não sei dizer ao certo se vegetal ou animal. Diversas
características de primitividade extrema.”. Dessa vez temos uma descrição
extremamente minuciosa que nos possibilita ver a criatura da forma em que
Lovecraft a imaginou. O espaço para nossa imaginação, nesse segundo momento
literário de Lovecraft, sofre uma compressão imensa, e assim a afirmação em
questão se torna falsa.
“Lovecraft era ocultista.”
Mito.
Lovecraft era materialista-mecanicista, o que significa que acreditava que tudo
no universo se resumia à matéria. Assim, ele acreditava firmemente na ciência e
suas descobertas, refutando qualquer explicação mitológica ou religiosa para o
mundo. Durante sua infância o autor se aventurou sim, por algumas religiões
como o paganismo romano e o islamismo, porém logo que definiu sua filosofia
materialista refutou qualquer religiosidade possível em sua vida. Sob esse
ponto de vista, o ocultismo pode ser analisado como simplesmente mais uma religião,
sem lugar na vida de Lovecraft. Histórias sobre pertencer a certas seitas e
cadeias ocultistas são apenas lendas e subversões, surgidas pela falta de
estudo e entendimento na vida do escritor ou ainda pela simples vontade de
mitifica-lo (ainda mais dentro do contexto de sua época com nomes como Aleister
Crowley em foco). Apesar ainda de ter criado sua própria mitologia ficcional,
Lovecraft depositou, até o fim de sua vida, toda sua confiança na
racionalidade. Sua mitologia original, o Cthulhu
Mythos, trabalha com a questão do extraterrestre, com um sentido de que não
há deuses nesse universo, mas apenas criaturas poderosas em relação ao ser
humano e que não dispõem relação direta com nossa raça. Assim como estão
vagando ao acaso através do universo, também estamos nós. A simples tentativa
de contato ou compreensão acerca dessas criaturas leva a humanidade à loucura
ou morte fatal. Sendo assim, a utilização de temas lovecraftianos por correntes
ocultistas e seitas satanistas não tem cabimento algum, uma vez que satanismo
nada mais é do que uma vertente do cristianismo. Podemos concluir então, que
tomar Lovecraft como ocultista, ou ainda utilizar seu Mythos como real, são
ambas tentativas completamente falhas.
Adorei o texto, bem escrito e informativo
ResponderExcluirObrigada :D
ExcluirAdorei o texto, bem escrito e informativo
ResponderExcluirSe Lovecraft revivece hoje em dia, acham que ele deixaria seus preconceitos?
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